terça-feira, 24 de maio de 2011

Biografia de Camões por Susana Nunes (uma viagem) ...

... Sobre as ondas

"Não sabemos, com certeza, onde e quando nasceu, sabemos, com certeza, onde e quando morreu, 10 de Junho de 1580.

"Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,/ Não há nada mais simples./ Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte.", ao argonauta Caeiro permitiram-lhe a identidade, ao épico, o desconhecido, o duvidoso desvendar.

A vida do imortal cantor dos Lusíadas acha-se envolvida em tantas incertezas que impossível se torna, a cada passo, extremar nela a realidade puramente histórica, das lendas ou conjecturas mais ou menos fantasistas.

[...]

Luís Vaz de Camões, segundo a opinião mais geralmente aceite, nasceu em Lisboa, em 1524. [...]. Terá estudado em Coimbra até 1542. [...]. Incerto o ano em que começou a frequentar a corte de D. João III, certo o desterro a que foi obrigado para o Ribatejo por haver caído no desagrado do monarca talvez (agora permitam-me enumerar suposições) pelas alusões no Auto de El -Rei Seleuco, por alguma rixa violenta a que o arrastasse a sua mocidade impetuosa [...] Em 1547 partiu para Ceuta [...] Em 1552, já em Lisboa,a sua índole aventureira novamente o leva à prisão. Em clausura e repouso, terá lido a primeira Década, de João de Barros. [...]

No seu regresso a Goa, em 1559, naufragou nuns baixos do mar da China, conseguindo a custo salvar Os Lusíadas. [...] Torturado de desgostos e desilusões (supomos nós...), resolveu voltar à pátria. Em 1567, embarcou para o reino, indo invernar em Moçambique,  onde Diogo de Couto o encontrou "tão pobre que comia de amigos". Daó velejou Camões para Portugal, vindo encontrar Lisboa devastada pela peste de 1569. Após a publicação d' Os Lusíadas, em 1572, foi-lhe abonada a tença de 15:000 réis. Pouco se conhece dos últimos anos do poeta."



Fonte: Revista Flores de Verde Pinho, ESV 2011

Reflexos da lírica camoniana na contemporaneidade

"Camões e a tença", Sophia de Mello Breyner, Grades (1970)

Irás ao paço. Irás pedir que a tença
Seja paga na data combinada.
Este país te mata lentamente
País que tu chamaste e não responde
País que tu nomeias e não nasce.


Em tua perdição se conjuraram
Calúnias desamor inveja ardente
E sempre os inimigos sobejaram
A quem ousou ser mais que a outra gente.


E aqueles que invoscaste não te viram
Porque estavam curvados e dobrados
Pela paciência cuja mão de cinza
Tinha apagado os olhos no seu rosto.

Irás ao paço irás pacientemente
Pois não te pedem canto mas paciência.


Este país te mata lentamente.


Fonte: luso-poemas.net

Reflexos da lírica camoniana na contemporaneidade

Manuel Alegre, O Canto e as Armas, in Obra Poética, Lisboa, D. Quixote, 2000, p.193


Aquela clara madrugada que
Viu lágrimas correrem no teu rosto
E alegre se fez triste como se
chovesse de repente em pleno Agosto.

Ela só viu meus dedos nos teus dedos
Meu nome no teu nome. E demorados
Viu nossos olhos juntos nos segredos
Que em silêncio dissemos separados.

A clara madrugada em que parti
Só ela viu teu rosto olhando a estrada
Por onde o automóvel se afastava.

E viu que a pátria estava toda em ti
E ouviu dizer adeus essa palavra
Que fez tão triste a clara madrugada.




Fonte: Manual Português + 10ºano, Areal Editores

Reflexos da lírica camoniana na contemporaneidade

"O amor é" de Nuno Júdice, Geometria Variável, Lisboa, D. Quixote, 2005, p. 94

"Ferida que não dói,
a palavra que não precisa de ser dita,
um olhar suspenso dos teus olhos,
respirar o ar em que respiras.


dizer o teu nome
e ouvir nele a tua voz,
esperar-te a cada instante
em que sei que me esperas,
dar-te a alegria que me dás,
ver-te chegar num eco de ave
e deixar que me prendas
com o teu gesto mais suave,
sentir-te, só, ao pé de mim,
e sentir-me tão longe de ti,
saber que existes em mim
como sei que existo em ti,
a flor de fogo do teu corpo,
a beijar essa flor."




Fonte: Manual Português + 10º ano, Areal Editores

Reflexos da lírica camoniana na contemporaneidade

José Mário Branco, Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, CD, 1971

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre, tomando sempre novas qualidades.

E se todo o mundo é composto de mudança
troquemos-lhe as voltas que ainda o dia é uma criança.

Continuamante vemos  novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem, e do bem, (se algum houve...) as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e em mim converte em choro o doce canto.
e em mim converte, e em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto:
que não se muda já como soía
que não se muda, que não se muda já como soía.



Fonte: Manual Português + 10º ano, Areal Editores

Reflexos da lírica camoniana na contemporaneidade

Sérgio Godinho, Domingo no mundo, Valentim de Carvalho, 1997
Manda-me uma carta em correio azul
p'ra afastar estas cinco nuvens negras
relembra-me as regras
do saber viver
repõe-me o sentido nos sentidos
olfactos
ouvidos
à vista
de tactos
do teu paladar


Manda-me uma carta em correio azul
p'ra afastar esses blues de pacotilha
renega e perfilha
respectivamente
a torpe indiferença
e o amor ardente
amor tão ardente
que dos erros meus
má fortuna se ausente


Erros meus, má fortuna, amor ardente
qual em nós mais frequente
qual em nós mais frequente
amor ardente
cada vez mais frequente


Manda-me uma carta em correio azul
que me deixe a face roburizada
promete-me a noite fatigada
de termos aberto o nosso nexo
ao sexo
da vida
porção destemida
da nossa emoção


Erros meus, má fortuna, amor ardente
qual em nós mais frequente
qual em nós mais frequente
amor ardente
cada vez mais frequente


Manda-me uma carta em correio azul
que branqueie o passado num momento
paixão, é no corpo o sentimento
que faz da razão montanha russa
aguça
o encanto
mas no entretanto
faz estragos mil


Erros meus, má fortuna, amor ardente
qual em nós mais frequente
qual em nós mais frequente
amor ardente
cada vez mais frequente


Manda-me uma carta em correio azul
para eu guardar no castanho dos armários
no meio de testemunhos vários
escritos por letras tão distantes
murmúrios amantes
que a vida me oferece
só por muito amar


Erros meus, má fortuna, amor ardente
qual em nós mais frequente
qual em nós mais frequente
amor ardente
cada vez mais frequente



Fonte: Manual Português + 10º ano, Areal Editores

Soneto "Erros meus, má fortuna, amor ardente"

Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que pera mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa [a] que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!


Luís de Camões          

Fonte: Manual Português + 10º ano, Areal Editores

Autobiografia na lírica

"A biografia de alguém que se tornou célebre desperta sempre curiosidade, particularmente quando se suspeita que a sua vida foi atribulada, agitada ou aventurosa. E, nestes casos, à falta de documentação segura, a imaginação encarrega-se de criar factos que a tradição valida Assim sendo, vamos descobrir que possível auto-retrato nos sugere o seguinte soneto."

Fonte: Manual Plural 10, Lisboa Editora

Soneto "Um mover d' olhos brando e piadoso"

     Um mover d’olhos, brando e piadoso,
     sem ver de quê; um riso brando e honesto,
     quase forçado; um doce e humilde gesto,
     de qualquer alegria duvidoso;
     um despejo quieto e vergonhoso;
     um repouso gravíssimo e modesto;
     uma pura bondade, manifesto
     indício da alma, limpo e gracioso;
     um encolhido ousar; uma brandura;
     um medo sem ter culpa; um ar sereno;
     um longo e obediente sofrimento:
     esta foi a celeste formosura
     da minha Circe, e o mágico veneno
     que pôde transformar meu pensamento.


Luís de Camões

Fonte: Manual Plural 10, Lisboa Editora

Soneto "Transforma-se o amador na cousa amada"

Transforma-se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
não tenho, logo, mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minh'alma transformada,
que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,
que, como um acidente em seu sujeito,
assi co a alma minha se conforma,

está no pensamento como ideia:
[e] o vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simples busca a forma.

Luís de Camões
Fonte: Manual Português + 10º ano, Lisboa Editora

O Amor

"O Amor é um tópico constante na poética camoniana. Por exemplo, o tema do retrato feminino tem uma estreita relação com a temática do amor. A relação que se estabelece com a Mulher e os efeitos que este ser idealizado (ou não) tem na vida do sujeito poético configuram um conceito de amor. Qual ou quais?"

Fonte: Manual Plural 10, Lisboa Editora

Soneto "Tanto de meu estado me acho incerto"

     Tanto de meu estado me acho incerto,
     que em vivo ardor tremendo estou de frio;
     sem causa, juntamente choro e rio;
     o mundo todo abarco e nada aperto.

     É tudo quanto sinto um desconcerto;
     da alma um fogo me sai, da vista um rio;
     agora espero, agora desconfio,
     agora desvario, agora acerto.

     Estando em terra, chego ao Céu voando;
     nu~a hora acho mil anos, e é de jeito
     que em mil anos não posso achar u~a hora.

     Se me pergunta alguém porque assim ando,
     respondo que não sei; porém suspeito
     que só porque vos vi, minha Senhora.

Luís de Camões

Fonte: Manual Português + 10º ano, Areal Editores

Esparsa "Desconcerto"

   Os bons vi sempre passar
    No Mundo graves tormentos;
   E pera mais me espantar,
   Os maus vi sempre nadar
    Em mar de contentamentos.
    Cuidando alcançar assim
    O bem tão mal ordenado,
    Fui mau, mas fui castigado.
    Assim que, só pera mim,
    Anda o Mundo concertado.

Luís de Camões



Fonte: Manual Português + 10º ano, Areal Editores

Desconcerto

"Ausência de ordem, de harmonia ou regra. O "desconcerto" é um dos temas que Camões privilegia e que aparece na sua obra lírica e épica, sob diversas formas. Desconcerto individual, desconcerto social...num e noutro caso, um embate frequente do poeta com o absurdo. Como se vê a si próprio face a esse desconcerto? Espetador ou vítima?"

Fonte: Manual Plural 10, Lisboa Editora