domingo, 28 de agosto de 2011

Soneto "Que me quereis, perpétuas saudades?"


Que me quereis, perpétuas saudades?
Com que esperança inda me enganais?
Que o tempo que se vai não torna mais,
E se torna, não tornam as idades.

Razão é já, ó anos, que vos vades,
Porque estes tão ligeiros que passais,
Nem todos pera um gosto são iguais,
Nem sempre são conformes as vontades.

Aquilo a que já quis é tão mudado,
Que quase é outra cousa, porque os dias
Têm o primeiro gosto já danado.

Esperanças de novas alegrias
Não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado,
Que do contentamento são espias.

Luís de Camões

Soneto "Posto me tem Fortuna em tal estado"

Posto me tem Fortuna em tal estado,
E tanto a seus pés me tem rendido!
Não tenho que perder já, de perdido;
Não tenho que mudar já, de mudado.

Todo o bem pera mim é acabado;
Daqui dou o viver já por vivido;
Que, aonde o mal é tão conhecido,
Também o viver mais será escusado,

Se me basta querer, a morte quero,
Que bem outra esperança não convém;
E curarei um mal com outro mal.

E, pois do bem tão pouco bem espero,
Já que o mal este só remédio tem,
Não me culpem em querer remédio tal.

Luís de Camões

Soneto "No mundo quis o Tempo que se achasse"

No mundo quis o Tempo que se achasse
O bem que por acerto ou sorte vinha;
E, por exprimentar que dita tinha,
Quis que a Fortuna em mim se exprimentasse.

Mas por que meu destino me mostrasse
Que nem ter esperanças me convinha,
Nunca nesta tão longa vida minha
Cousa me deixou ver que desejasse.

Mudando andei costume, terra e estado,
Por ver se se mudava a sorte dura;
A vida pus nas mãos de um leve lenho.

Mas, segundo o que o Céu me tem mostrado,
Já sei que deste meu buscar ventura
Achado tenho já que não a tenho.

Luís de Camões

Soneto "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades"

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Luís de Camões

Soneto "Ah! minha Dinamene! Assim deixaste"

Ah! minha Dinamene! Assim deixaste
Quem não deixara nunca de querer-te!
Ah! Ninfa minha, já não posso ver-te,
Tão asinha esta vida desprezaste!

Como já pera sempre te apartaste
De quem tão longe estava de perder-te?
Puderam estas ondas defender-te
Que não visses quem tanto magoaste?

Nem falar-te somente a dura Morte
Me deixou, que tão cedo o negro manto
Em teus olhos deitado consentiste!

Oh mar! oh céu! oh minha escura sorte!
Que pena sentirei que valha tanto,
Que inda tenha por pouco viver triste?

Luís de Camões

Soneto "Se tanta pena tenho merecida"

Se tanta pena tenho merecida
Em pago de sofrer tantas durezas,
Provai, Senhora, em mim vossas cruezas,
Que aqui tendes u~a alma oferecida.

Nela experimentai, se sois servida,
Desprezos, desfavores e asperezas,
Que mores sofrimentos e firmezas
Sustentarei na guerra desta vida.

Mas contra vosso olhos quais serão?
Forçado é que tudo se lhe renda,
Mas porei por escudo o coração.

Porque, em tão dura e áspera contenda,
ƒÉ bem que, pois não acho defensão,
Com me meter nas lanças me defenda.

Luís de Camões

Soneto "Amor é fogo que arde sem se ver"

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís de Camões

Soneto "O dia em que nasci moura e pereça"

O dia em que nasci moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar;
Não torne mais ao Mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o Sol padeça.

A luz lhe falte, O Sol se [lhe] escureça,
Mostre o Mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao Mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!


 Luís de Camões

Soneto "Alma minha gentil, que te partiste"

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Algu~a cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.


Luís de Camões

Soneto "Enquanto quis Fortuna que tivesse"

Enquanto quis Fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de um suave pensamento
Me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
Minha escritura a algum juízo isento,
Escureceu-me o engenho co'o tormento,
Para que seus enganos não disesse


Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! Quando lerdes
Num breve livro casos tão diversos,

Verdades puras são e não defeitos;
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos.

Luís de Camões

Imagem


[Imagem do Google]

terça-feira, 24 de maio de 2011

Biografia de Camões por Susana Nunes (uma viagem) ...

... Sobre as ondas

"Não sabemos, com certeza, onde e quando nasceu, sabemos, com certeza, onde e quando morreu, 10 de Junho de 1580.

"Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,/ Não há nada mais simples./ Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte.", ao argonauta Caeiro permitiram-lhe a identidade, ao épico, o desconhecido, o duvidoso desvendar.

A vida do imortal cantor dos Lusíadas acha-se envolvida em tantas incertezas que impossível se torna, a cada passo, extremar nela a realidade puramente histórica, das lendas ou conjecturas mais ou menos fantasistas.

[...]

Luís Vaz de Camões, segundo a opinião mais geralmente aceite, nasceu em Lisboa, em 1524. [...]. Terá estudado em Coimbra até 1542. [...]. Incerto o ano em que começou a frequentar a corte de D. João III, certo o desterro a que foi obrigado para o Ribatejo por haver caído no desagrado do monarca talvez (agora permitam-me enumerar suposições) pelas alusões no Auto de El -Rei Seleuco, por alguma rixa violenta a que o arrastasse a sua mocidade impetuosa [...] Em 1547 partiu para Ceuta [...] Em 1552, já em Lisboa,a sua índole aventureira novamente o leva à prisão. Em clausura e repouso, terá lido a primeira Década, de João de Barros. [...]

No seu regresso a Goa, em 1559, naufragou nuns baixos do mar da China, conseguindo a custo salvar Os Lusíadas. [...] Torturado de desgostos e desilusões (supomos nós...), resolveu voltar à pátria. Em 1567, embarcou para o reino, indo invernar em Moçambique,  onde Diogo de Couto o encontrou "tão pobre que comia de amigos". Daó velejou Camões para Portugal, vindo encontrar Lisboa devastada pela peste de 1569. Após a publicação d' Os Lusíadas, em 1572, foi-lhe abonada a tença de 15:000 réis. Pouco se conhece dos últimos anos do poeta."



Fonte: Revista Flores de Verde Pinho, ESV 2011

Reflexos da lírica camoniana na contemporaneidade

"Camões e a tença", Sophia de Mello Breyner, Grades (1970)

Irás ao paço. Irás pedir que a tença
Seja paga na data combinada.
Este país te mata lentamente
País que tu chamaste e não responde
País que tu nomeias e não nasce.


Em tua perdição se conjuraram
Calúnias desamor inveja ardente
E sempre os inimigos sobejaram
A quem ousou ser mais que a outra gente.


E aqueles que invoscaste não te viram
Porque estavam curvados e dobrados
Pela paciência cuja mão de cinza
Tinha apagado os olhos no seu rosto.

Irás ao paço irás pacientemente
Pois não te pedem canto mas paciência.


Este país te mata lentamente.


Fonte: luso-poemas.net

Reflexos da lírica camoniana na contemporaneidade

Manuel Alegre, O Canto e as Armas, in Obra Poética, Lisboa, D. Quixote, 2000, p.193


Aquela clara madrugada que
Viu lágrimas correrem no teu rosto
E alegre se fez triste como se
chovesse de repente em pleno Agosto.

Ela só viu meus dedos nos teus dedos
Meu nome no teu nome. E demorados
Viu nossos olhos juntos nos segredos
Que em silêncio dissemos separados.

A clara madrugada em que parti
Só ela viu teu rosto olhando a estrada
Por onde o automóvel se afastava.

E viu que a pátria estava toda em ti
E ouviu dizer adeus essa palavra
Que fez tão triste a clara madrugada.




Fonte: Manual Português + 10ºano, Areal Editores

Reflexos da lírica camoniana na contemporaneidade

"O amor é" de Nuno Júdice, Geometria Variável, Lisboa, D. Quixote, 2005, p. 94

"Ferida que não dói,
a palavra que não precisa de ser dita,
um olhar suspenso dos teus olhos,
respirar o ar em que respiras.


dizer o teu nome
e ouvir nele a tua voz,
esperar-te a cada instante
em que sei que me esperas,
dar-te a alegria que me dás,
ver-te chegar num eco de ave
e deixar que me prendas
com o teu gesto mais suave,
sentir-te, só, ao pé de mim,
e sentir-me tão longe de ti,
saber que existes em mim
como sei que existo em ti,
a flor de fogo do teu corpo,
a beijar essa flor."




Fonte: Manual Português + 10º ano, Areal Editores

Reflexos da lírica camoniana na contemporaneidade

José Mário Branco, Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, CD, 1971

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre, tomando sempre novas qualidades.

E se todo o mundo é composto de mudança
troquemos-lhe as voltas que ainda o dia é uma criança.

Continuamante vemos  novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem, e do bem, (se algum houve...) as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e em mim converte em choro o doce canto.
e em mim converte, e em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto:
que não se muda já como soía
que não se muda, que não se muda já como soía.



Fonte: Manual Português + 10º ano, Areal Editores

Reflexos da lírica camoniana na contemporaneidade

Sérgio Godinho, Domingo no mundo, Valentim de Carvalho, 1997
Manda-me uma carta em correio azul
p'ra afastar estas cinco nuvens negras
relembra-me as regras
do saber viver
repõe-me o sentido nos sentidos
olfactos
ouvidos
à vista
de tactos
do teu paladar


Manda-me uma carta em correio azul
p'ra afastar esses blues de pacotilha
renega e perfilha
respectivamente
a torpe indiferença
e o amor ardente
amor tão ardente
que dos erros meus
má fortuna se ausente


Erros meus, má fortuna, amor ardente
qual em nós mais frequente
qual em nós mais frequente
amor ardente
cada vez mais frequente


Manda-me uma carta em correio azul
que me deixe a face roburizada
promete-me a noite fatigada
de termos aberto o nosso nexo
ao sexo
da vida
porção destemida
da nossa emoção


Erros meus, má fortuna, amor ardente
qual em nós mais frequente
qual em nós mais frequente
amor ardente
cada vez mais frequente


Manda-me uma carta em correio azul
que branqueie o passado num momento
paixão, é no corpo o sentimento
que faz da razão montanha russa
aguça
o encanto
mas no entretanto
faz estragos mil


Erros meus, má fortuna, amor ardente
qual em nós mais frequente
qual em nós mais frequente
amor ardente
cada vez mais frequente


Manda-me uma carta em correio azul
para eu guardar no castanho dos armários
no meio de testemunhos vários
escritos por letras tão distantes
murmúrios amantes
que a vida me oferece
só por muito amar


Erros meus, má fortuna, amor ardente
qual em nós mais frequente
qual em nós mais frequente
amor ardente
cada vez mais frequente



Fonte: Manual Português + 10º ano, Areal Editores

Soneto "Erros meus, má fortuna, amor ardente"

Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que pera mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa [a] que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!


Luís de Camões          

Fonte: Manual Português + 10º ano, Areal Editores

Autobiografia na lírica

"A biografia de alguém que se tornou célebre desperta sempre curiosidade, particularmente quando se suspeita que a sua vida foi atribulada, agitada ou aventurosa. E, nestes casos, à falta de documentação segura, a imaginação encarrega-se de criar factos que a tradição valida Assim sendo, vamos descobrir que possível auto-retrato nos sugere o seguinte soneto."

Fonte: Manual Plural 10, Lisboa Editora

Soneto "Um mover d' olhos brando e piadoso"

     Um mover d’olhos, brando e piadoso,
     sem ver de quê; um riso brando e honesto,
     quase forçado; um doce e humilde gesto,
     de qualquer alegria duvidoso;
     um despejo quieto e vergonhoso;
     um repouso gravíssimo e modesto;
     uma pura bondade, manifesto
     indício da alma, limpo e gracioso;
     um encolhido ousar; uma brandura;
     um medo sem ter culpa; um ar sereno;
     um longo e obediente sofrimento:
     esta foi a celeste formosura
     da minha Circe, e o mágico veneno
     que pôde transformar meu pensamento.


Luís de Camões

Fonte: Manual Plural 10, Lisboa Editora

Soneto "Transforma-se o amador na cousa amada"

Transforma-se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
não tenho, logo, mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minh'alma transformada,
que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,
que, como um acidente em seu sujeito,
assi co a alma minha se conforma,

está no pensamento como ideia:
[e] o vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simples busca a forma.

Luís de Camões
Fonte: Manual Português + 10º ano, Lisboa Editora

O Amor

"O Amor é um tópico constante na poética camoniana. Por exemplo, o tema do retrato feminino tem uma estreita relação com a temática do amor. A relação que se estabelece com a Mulher e os efeitos que este ser idealizado (ou não) tem na vida do sujeito poético configuram um conceito de amor. Qual ou quais?"

Fonte: Manual Plural 10, Lisboa Editora

Soneto "Tanto de meu estado me acho incerto"

     Tanto de meu estado me acho incerto,
     que em vivo ardor tremendo estou de frio;
     sem causa, juntamente choro e rio;
     o mundo todo abarco e nada aperto.

     É tudo quanto sinto um desconcerto;
     da alma um fogo me sai, da vista um rio;
     agora espero, agora desconfio,
     agora desvario, agora acerto.

     Estando em terra, chego ao Céu voando;
     nu~a hora acho mil anos, e é de jeito
     que em mil anos não posso achar u~a hora.

     Se me pergunta alguém porque assim ando,
     respondo que não sei; porém suspeito
     que só porque vos vi, minha Senhora.

Luís de Camões

Fonte: Manual Português + 10º ano, Areal Editores

Esparsa "Desconcerto"

   Os bons vi sempre passar
    No Mundo graves tormentos;
   E pera mais me espantar,
   Os maus vi sempre nadar
    Em mar de contentamentos.
    Cuidando alcançar assim
    O bem tão mal ordenado,
    Fui mau, mas fui castigado.
    Assim que, só pera mim,
    Anda o Mundo concertado.

Luís de Camões



Fonte: Manual Português + 10º ano, Areal Editores

Desconcerto

"Ausência de ordem, de harmonia ou regra. O "desconcerto" é um dos temas que Camões privilegia e que aparece na sua obra lírica e épica, sob diversas formas. Desconcerto individual, desconcerto social...num e noutro caso, um embate frequente do poeta com o absurdo. Como se vê a si próprio face a esse desconcerto? Espetador ou vítima?"

Fonte: Manual Plural 10, Lisboa Editora